Crônicas dos Campos Gerais: ‘Fruto do pós-guerra’ | aRede
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Crônicas dos Campos Gerais: ‘Fruto do pós-guerra’

Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada e formada em história pela UEPG

Sueli Fernandes é professora aposentada, nascida em Ponta Grossa e filha da escritora, trovadora e artista plástica Amalia Max.
Sueli Fernandes é professora aposentada, nascida em Ponta Grossa e filha da escritora, trovadora e artista plástica Amalia Max. -

Da Redação

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Texto de autoria de Sueli Maria Buss Fernandes, professora aposentada e formada em história pela UEPG

Era domingo de carnaval. Meio dia. A terra natal espiou minha chegada ao mundo naquele dia ensolarado. Em casa; pelas mãos de uma parteira. A mãe, dezoito anos incompletos. Quase uma criança cuidando de outra. O pai, vinte e seis. Havia voltado há pouco da Itália, não por turismo, voltava da guerra!

De navio, além do Atlântico, fez fileira com os aliados em terras italianas na Segunda Guerra. Um ano e três dias longe da Pátria, e por ela. Solo inóspito, coberto de neve, sol insuficiente para aquecer seu corpo rígido pelo frio inclemente. Pés enrolados em camadas de jornal, depois meias e botas. A gangrena esperava uma chance. Roupas grossas e um cachecol de lã.

Cozinheiro da tropa, chegava antes ao acampamento para que os demais tivessem comida fresca e quente. Mais uma panelada de arroz saboroso! Foi premiado por isso. Comida enlatada era a solução para os dias mais turbulentos. Não usou armas letais. Suas armas foram o fogão e as panelas.

Nativos famintos chegavam em sua barraca pedindo alimento. Moças ofereciam seus corpos em troca de comida. Canhões, fuzis, corpos espalhados, sangue, gemidos, granadas ensurdecedoras; explosões que mutilavam.

Alerta de bombardeio inimigo! Corrida para a trincheira, buraco cavado na terra para proteção. Um chiqueiro desativado seria seu teto por uma noite. Estava sozinho. Fez um pudim e esperava esfriar. As bombas riscavam de luz a noite escura. Escondeu-se. Amanheceu. Do pudim e do chiqueiro nada restou. Estava vivo.

“Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá...” diz a Canção do Expedicionário. E Deus permitiu que voltasse. Um ouvido lesionado pelo estrondo de uma granada que explodiu a dois metros de distância, no exato espaço onde deveria ter se lançado ao chão. Não o fez pelo extremo cansaço. Uma neurose que durou alguns anos.

Pesadelos constantes. Noites agitadas, corpo coberto de suor. Durante o sono, julgava que sua esposa corria perigo e então a subjugava com seu corpo para defendê-la de ataques. A madrugada testemunhava gritos dela. Urgia acordá-lo e tirá-lo daquele transe.

Na mochila trouxe o cachecol, uma faca, presente de um companheiro morto na boca da trincheira, algumas fotos, palavras no idioma italiano e canções que entoava alegremente. Os relatos chocantes das experiências vividas se perderam no tempo; no entanto, povoaram minha lembrança por muitos carnavais.

Texto produzido no âmbito do projeto Crônica dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais

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