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O golpe de 31 de 1964 – uma data que sugere indagações

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Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat

Professor Adjunto do Depto. de História/UEPG

Professor do Mestrado em História, Cultura e Identidades/UEPG

As datas (e os eventos a ela relacionados) dão (ou devem dar) o que pensar, pois mais que motivos para avivar recordações ou sugerir celebração, devem (ou deveriam) instigar dúvidas, desestabilizando aquilo que é tomado como corrente, suscitando reflexões. E, neste caso – em relação ao 31 de março – nada, por certo, estaria mais distante de sugerir celebrações.

Já de imediato – respeitando um princípio para qualquer análise de discurso que diz que se deve buscar, sempre, reconhecer o lugar do qual o discurso emana – devo dizer que falo como professor da área na qual atuo: Teoria da História, um campo que investiga as próprias possibilidades e limites (e, portanto, a própria razão de ser) deste conhecimento que tratamos como História. É a este lugar que minha fala se atrela ou dele que emana.

Partindo de questões atinentes ao estudo da Teoria,vê-se (em relação ao evento do 31 de março) um mote privilegiado para se pensar problemas postos ao estudo e escrita da história, ou seja, à Historiografia. Assim, a própria data e a ideia de acontecimento que dela decorre nos podem ser sugestivas, dado que o significado que se atribui aos eventos devem ser tomados a partir da atribuição de sentido infringido por diferentes leituras – presentes – do passado. Dito de outro modo é fundamental lembrarmos que se todo evento apresenta um caráter simbólico, cabendo aos historiadores problematizarem as construções que dão corporeidade (narrativa) a este caráter. Como exemplo tome-se os próprios termos meio século ou uma data:há diferenças em tratarmos o 31 de março a partir da consideração acontecimental ou do período de cinquenta anos; como nos recomenda a retomada Histórica Política, os eventos são indicadores, ou indicativos, de crises: “o evento modifica irremediavelmente o curso das coisas” e, por isto, “o evento une uma geração” (René Rémond). Da mesma forma, a partir do evento em questão, podemos sugerir referência aos problemas do papel do sujeito em relação à história – o que nos remete, entre outros, para os debates (contemporâneos) do biografismo e da produção ou promoção dos enfoques biográficos.

Ainda em torno da apropriação do evento e de seus significados, vê-se um conflito entre o lugar e os papéis da Memória e da própria História (Historiografia), apontando para diferentes formas de compreensão dos tempos históricos e suas articulações, e de representação do vivido, mesmo ainda que ambas denotem em possibilidade de conhecimento do passado.

Refletir ainda sobre um evento desta natureza (ou seria dizer “desta importância”?) nos faz pensar sobre os usos e abusos da história e em aspectos nem sempre tomados como relevantes – como o de seu uso retórico. Vemos corriqueiramente despontar questões do tipo “a história se repete” ou, ainda, a orientação em se aprender moralmente com o passado (extraindo “lições” de fatos passados). Entendo que tal recorrência tem mera ênfase retórica, dado que diante do quadro corrente dos usos e entendimento da historiografia, tais asserções não tem sustentação alguma. Sendo incisivo, poder-se-ia dizer: nada aprendemos (moralmente) com a história e, muito menos, a história se repete. Portanto a utilização de argumentos tomados de um passado mais ou menos distante para legitimar, denunciar ou refutar moralmente questões hodiernas caracterizaria este viés retórico (do passado como lição). Contudo, do ponto de vista de uma história da historiografia, tais recorrências demonstram o uso político e também anacrônico de determinadas leituras de história e de passado, desse modo, ser de interesse para se pensar a constituição e legitimidade deste saber em nosso próprio tempo.

Assim, se por um lado – diante dos cinquenta anos do Golpe Militar que instaurou mais um longo período de exceção na República brasileira – podemos aventar possibilidades para se pensar a própria escrita da história, por outro vemos também mais que sugestões: verdadeiras e urgentes demandas, uma vez que se faz necessário um questionamento aprofundado deste período, que revele responsabilidades, evitando omissões e silenciamentos – elementos que, fatidicamente criando versões e esquecimentos, parecem acompanhar a vida política (e pública) brasileira.

Entendendo que o conhecimento histórico é produzido por pessoas alocadas num dado presente e que, deste modo, carrega inevitavelmente as marcas de seu tempo de produção, tendo a concordar com duas observações aparentemente discordantes: a do historiador David Lowenthal, que diz que “a consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial ao nosso bem-estar” e a da ensaísta argentina Beatriz Sarlo, que afirma que “o passado é sempre conflituoso. É este trabalho (de “consciência do passado”) – que não pode admitir conivências ou conveniências – que entendo como “essencial ao nosso bem-estar“. Consciência que não nos é inerente ou natural, mas, sim, produto da interação, do aprendizado e do convívio social, resultante da cultura e do próprio tempo histórico no qual estamos inseridos.

Nosso tempo não pode mais se satisfazer com a manutenção de antigas explicações e fantasmagorias que insistem em assombrar e permanecer. Precisamos de uma história que nos possibilite compreender nosso próprio tempo, mostrando-nos os liames que tristemente nos ligam ao passado e que devem ser enfrentados e dirimidos. E isto, diga-se, é papel que cabe ao próprio presente e à consciência e crítica históricas. Enfim, disto a razão de ser “o passado sempre conflituoso”, necessariamente conflituoso, pois opõem historicamente os homens e as suas vontades, interesses e leituras presentes.

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