O Golpe contra os movimentos de cultura e educação popular | aRede
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O Golpe contra os movimentos de cultura e educação popular

Gabriel Sartini

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Prof. Dr. Paulo Eduardo Dias de Mello

Professor Adjunto do Depto. de História/UEPG

Ao Prof. Osmar Fávero

Era madrugada do dia 20 de fevereiro de 1964, quando por determinação verbal do então governador do antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, integrantes da Delegacia de Ordem Política e Social, o DOPS, invadiram a sede da Companhia Editora Americana na cidade do Rio de janeiro. O objetivo era a apreensão de uma cartilha de alfabetização que Lacerda considerava “subversiva”. Foram recolhidos cerca de 3.000 exemplares do livro de leitura “Viver é lutar”, material que era parte de um conjunto didático de alfabetização elaborado por integrantes do Movimento de Educação de Base, o MEB, movimento criado em 1961 a partir de um convênio entre o Governo Federal e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, constituiu uma rede nacional de alfabetização de adultos por meio de escolas radiofônicas.

No início da década de 1960, o Brasil tinha uma população de cerca de 80 milhões de habitantes. Nas eleições daquele ano participaram cerca de 12 milhões de eleitores. Era vedado o voto aos analfabetos. A taxa de analfabetismo, segundo o IBGE, era de 40% de analfabetos entre as pessoas com mais de 15 anos, ou seja, o país contava com 16 milhões de analfabetos. Em sua mensagem de abertura da sessão legislativa de 1964, o presidente João Goulart afirmava: (...) discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora investidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por serem analfabetos. Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão irrecusável de que o atual quadro de eleitores já não representa a Nação, urgindo sua ampliação para salvaguarda da democracia brasileira.

Nesse contexto, em que a alfabetização e o direito ao voto passaram ocupar um espaço importante na agenda do país, se intensificaram vários movimentos de educação popular, que vinham na esteira do Sistema de Rádio Educativo Nacional - SIRENA (1958); do Serviço de Rádio Difusão da Arquidiocese de Natal (1958); do Movimento de Cultura Popular - MCP, de Recife, em Pernambuco (1960); da Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler, organizada pela Prefeitura de Natal no Rio Grande do Norte (1961); os Centros Populares de Cultura – CPC da União Nacional dos Estudantes – UNE (1961).O MEB participava desse processo.

Nesse período, o educador Paulo Freire sistematizou um método de alfabetização, a partir de estudos e observações sobre as experiências de educação de adultos, que ganharia seu nome. A proposta era superar a forma tradicional de alfabetizar, dando agilidade e consistência ao processo incorporando a cultura, a história de vida e questões vivenciadas na realidade social dos alfabetizandos com vista a um conhecimento de cunho libertador que colaborasse na organização popular e nas lutas pela melhoria de sua qualidade de vida. Alfabetizar não se reduzia a ensinar apenas a ler e escrever, decodificando e formando palavras, mas significava também ler, interpretar e transformara realidade. Alfabetizar representava o acesso ao voto e à possibilidade de mudar a realidade nacional.

A partir do êxito da experiência do programa de alfabetização realizado em Angicos/RN, em 1963, Jango determinou a criação de uma Comissão de Cultura Popular, presidida por Paulo Freire com o objetivo de organizar um programa nacional de alfabetização. O desafio era estender ao país o sucesso do processo que em 40 horas promoveu a alfabetização de trabalhadores rurais. Em 21 de abril de 1963 foi criado o Plano Nacional de Alfabetização.

A ação de Lacerda contra a cartilha do MEB, que antecede ao golpe militar de 31 de março de 1964, foi parte de sua estratégia de desencadear uma campanha contra os “bispos comunistas” e sua cartilha “subversiva”, mas representou um prenúncio do que se faria em 1º de abril, quando todas as atividades do Plano Nacional de Alfabetização foram interrompidas e o programa extinto duas semanas depois. O MCP, a Campanha Pé no Chão e os CPCs também foram eliminados logo após o golpe. O MEB sobreviveu, mas sob forte intervenção, e asfixia de recursos.

O 11º Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que data deste ano, revela que o Brasil conta com 12,9 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais, e é o oitavo país do mundo com maior taxa de analfabetismo entre adultos. Historiadores não apreciam a conjunção condicional “se”, pois revela conjecturas, hipóteses difíceis de comprovar. Mas, é inevitável pensar diante do fracasso da ditadura com o Mobral, e a persistência dos índices, que certamente teríamos um outro quadro se o curso da educação popular não tivesse sido interrompido pelo arbítrio e violência. Viver, ainda, é lutar.

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