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Traumas da tortura

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Prof. Drª. Christiane Marques Szesz

Professora Adjunta do Depto. de História/UEPG

Professora do Mestrado em História, Cultura e Identidades/UEPG

Prof. Dr. Renato Lopes Leite

Professor Adjunto do Depto. de História/UFPR

Professor do Mestrado em História/UFPR

Nos 21 anos do ciclo militar (1964-1985), a tortura é a identidade, a relação e o conflito entre a essência repressora do Estado e sua obsessão desmobilizadora da sociedade. A prática da tortura pelo Estado foi “o melhor termômetro da situação do país”. Desde os dias seguintes à deposição de João Goulart “podia-se aferir a profundidade da ditadura pela sistemática com que se torturavam seus dissidentes”. A “repressão policial” por meio da tortura acabaria por se tornar “um dos instrumentos burocráticos de ascensão e ampliação do poder” (GASPARI, 2002B : 129, 150).

No dia 2 de abril Gregório Bezerra, preso, fora puxado por um jipe por Recife. Foi espancado com uma barra de ferro em praça pública por um oficial do Exército. A noite foi visto na TV, “machucado e sentado no chão do pátio” de um quartel (Idem).

No dia 2 de junho Carlos Heitor Cony publicou, no Correio da Manhã, carta da filha do Almirante Cândido Aragão, que comandara os fuzileiros navais de João Goulart. Preso desde 2 de abril na fortaleza da Lage, a filha dizia que “o espectro de um homem que vi chora e ri desordenadamente, e não consegue articular uma frase sequer” (Idem). Ou seja, até mesmo entre os oficiais das Forças Armadas rompera-se, em 50 anos, o cavalheirismo.

A repressão política, de nova qualidade, “emanava do coração do regime. … A tortura passara a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições militares. Instalado como meio eficaz para combater a ‘corrupção e a subversão’”. Na impossibilidade de encarcerar os corruptos, que migraram para o novo regime, a tortura restringiu-se aos subversivos. “Aos poucos, a ordem revolucionária teve de conviver tanto com os corruptos como com os torquemadas que, infiltrando-se nas cabeceiras do regime, desejavam fazer do combate à ladroeira uma alavanca para o poder pessoal”. Surgia o termo “linha dura” para designar os ultra-revolucionários e, também, os “zurrapas”, oficiais que usavam a indisciplina como poder paralelo para ascender (Idem).

O cenário para os "crimes da ditadura" foi montado através do art. 10 do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que dizia: "Fica suspensa a garantia de HABEAS CORPUS nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional". Esse artigo atendeu "a reivindicação da máquina repressiva", e foi a pior marca da ditadura a ferir toda uma geração de brasileiros. "Os 10 dias de incomunicabilidade vinham a ser o dobro do tempo que a Coroa Portuguesa permitia pelo Alvará de 1705" (Idem).

Seguiu-se onda de prisões: Carlos Lacerda; Juscelino Kubitschek (preso em alojamento militar sujo, com privada sem tampa, sofá rasgado e goteiras); Hugo Gouthier (ex-embaixador em Roma); Sobral Pinto (com 75 anos). Nas Universidades foram expulsos 66 professores, dentre eles Caio Prado Jr (Livre docente na USP), Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Maria Yedda Linhares, o físico Jaime Tiommo e o médico Luís Hidelbrando Pereira da Silva. Marilia Pera, da peça Roda Vida, foi presa em mictório de quartel. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos por patrulha do Exército em São Paulo, vagaram por unidades militares pelo Rio de Janeiro, rasparam-lhes o cabelo comprido. Foram confinados em Salvador e exilados para Londres.

Para favorecer o trabalho dos torturadores estabeleceu-se depois que os encarregados por inquéritos políticos podiam prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10 dos quais em regime de incomunicabilidade.

No Estado do Paraná, pelo menos 175 pessoas foram vítimas de torturas. Para todo o país, o projeto Brasil: Nunca mais calcula 144 assassinatos sob tortura e 125 cidadãos desaparecidos de repartições do Estado. O início dos trabalhos da Comissão da Verdade aumentou o numero dos mortos pela ditadura, de 357 para quase 1.000. E pelo menos 1.918 prisioneiros políticos atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. Foram descritas 283 diferentes formas de tortura física utilizadas pelos órgãos de segurança (havia ainda as torturas psicológicas). Dentre elas destacam-se o “pau-de-arara”, sempre associado a “complementos” normais como eletrochoques, palmatória e afogamento. O choque elétrico, normalmente era nos órgãos sexuais. A “pimentinha” ou dobrador de tensão, aparelho que cria corrente elétrica com voltagem em torno de 100 volts e de grande corrente, ou seja, em torno de 10 amperes. Afogamento introduzindo-se uma mangueira de água corrente nas narinas ou boca, concomitante a descargas de choques elétricos. A “cadeira do dragão”, feita de metal ou espuma molhada, que tornava o choque elétrico mais eficiente. A geladeira, que era um ambiente de temperatura baixíssima e dimensões reduzidas. Ruídos cujo som variava do barulho de uma turbina de avião a uma estridente sirene de fábrica. Há relatos também de sevícias sexuais, do uso de drogas, além de animais como cobras, jacarés e baratas. Produtos químicos, injeção de éter, inclusive com borrifos nos olhos, ácido no rosto, soro de Pentotal. Cortes com gilete, lesões físicas. Espancamento com um cassetete de alumínio nas nádegas, até ficar em carne viva. “Telefone” até sangrar o ouvido. Amarrado pelos testículos de cabeça pra baixo. Palmatória; enforcamento até o desmaio; sal nos olhos e na boca. Tortura em crianças, mulheres e gestantes: nem os parentes dos presos escaparam, e há relatos que crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos.

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